terça-feira, dezembro 16, 2008

Democracia e afins (I)

Muitas vezes pensamos nas ideias sociais e morais vigentes como as que permanecerão para sempre. Obviamente que isto é não é verdade, outras ideias surgem nem que seja de forma cíclica. Gostaria assim de discutir o que hoje são consideradas "as ideias certas". Em especial a ideia de democracia.

Democracia actualmente é sinónima de sufrágio universal. Sobre isto há muito que falar. Os sinais que temos hoje em dia são que a abstenção mantém-se muito alta nos países que têm sufrágio universal. Muita gente interpreta (como eu) que isto significa que as pessoas ou não estão interessadas no acto ou estão completamente descrentes no sistema ou ambas. Mas depois desta interpretação são atiradas uns lamentos e mais nada. Não quererão estes sinais dizer alguma coisa? Ao fim e ao cabo as decisões do país estão a ser tomadas por uma parte não maioritária da população, será assim uma "democracia" real? Na minha opinião a maioria das pessoas só se interessa na política quando os seus direitos fundamentais (direitos humanos necessários à sobrevivência e dignidade, liberdade de pensamento e expressão, respeito) estão ameaçados. Se estes existirem penso que a maioria das pessoas não quer saber se o seu regime é uma democracia ocidental laica ou uma teocracia absoluta fervorosa.

Actualmente é uma heresia criticar o sistema democrático, sendo nós imediatamente rotulados de [inserir aqui um exemplo de regime sanguinário, preferencialmente do século XX]. Será o sufrágio universal o regime "final"? Eu acho que nada é permanente, e é por exemplo nestas coisas que penso. E sim, acredito firmemente nos direitos fundamentais das pessoas que já referi acima, não sou apologista de [inserir aqui um exemplo de regime sanguinário, preferencialmente do século XX]. A questão é se o direito político é um dos direitos fundamentais, mas será possível um sistema onde toda a gente tem um direito político que é exercido?

Imagine-se que temos um sistema legislativamente minimalista (que garanta somente os direitos fundamentais), quasi-anárquico (para toda a gente ter este direito político e poder usá-lo), pacífico num dado momento. Será possível que toda a gente cumpra os seus desejos? Claramente que não, basta imaginar que uma certa pessoa com ideais radicais pode tentar fazer cair o sistema vigente ao usar o seu direito político (e existem tantas pessoas...), por exemplo motivado por ideias religiosas. As leis desta sociedade fazem-no prender, violando assim a sua essência anárquica de que toda a gente tem direito político. De outro modo a sociedade colapsa. As sociedades humanas têm tensões sexuais, raciais, políticas e religiosas, não se pode criar um sistema teoricamente muito bonito mas que ignore estes problemas práticos.

Pode-se alterar então este regime para garantir que não colapse na prática ou teoria desta maneira? Imaginemos que o direito político não pode violar os direitos fundamentais nem alterar o regime. Este regime é estável, embora algumas pessoas nunca poderão pôr em prática as suas ideias porque violam o regime, e é isto que se pretende pois não se quer um psicopata a ter direito de por em prática as suas ideias. Mas como se decidirão as outras questões não radicais? Como toda a gente nesta sociedade tem direito político, ideias contraditórias surgirão. Como decidir agora? Uma maneira é o sufrágio universal, e é aqui que nas sociedades actuais entre a questão de maioria.

A maioria surgiu para resolver estes problemas. Quem tiver mais gente ganha. Esta ideia resolve este problema. Mas até que ponto ela funciona? Imagine-se que esta sociedade tem duas etnias, A e B, que querem ter a sua religião (ou ideal, tanto faz) respectiva como oficial do estado, mas que respeitam a ideia de sufrágio universal e maioria. Como a etnia A tem mais gente "ganha" e a sua religião passa a ser a oficial do estado (assume-se aqui que todos os cidadãos de A e B votam na sua religião respectiva). O que acontece com a B? A sua religião é respeitada pela constituição, pelo que ao respeitando a maioria e o sufrágio universal a etnia B vive só com os seus direitos fundamentais. Imagine-se outro caso, que o país quer construir uma capital. A vive no interior, B vive na costa. Assumamos que a capital na costa tem mais vantagens. Como as pessoas querem viver perto da capital (estou a pegar aqui em factos que acontecem na realidade, geralmente esta é a posição das pessoas, voltarei a isto mais tarde) A ganha novamente, apesar da localização em B ter mais vantagens. Aqui quero focar dois pontos:

1 - O direito político de A prevaleceu porque a etnia era maior, assim o direito político em regime de maioria depende só do número das pessoas com essa ideia, não interessando se essa ideia é boa ou má para o país.

2 – A etnia B vive sempre em minoria relativamente a A, sendo assim as suas ideias nunca vencem. Assim, é como se B vivesse sem direito político (porque de facto ele nunca é utilizado, embora exista de jure). No entanto B vive em paz porque os seus direitos fundamentais são respeitados.

As ideias deste país vão depender só das ideias da etnia A, porque são a maior parte da população. Se as ideias de A forem sucessivamente más para o país este acabará por ser ultrapassado nalgum índice por outros países. A única coisa que poderá evitar isto é a consciência nacional de pelo menos alguns cidadãos de A. Assim, a única forma do país seguir um melhor caminho é garantir que os cidadãos de A sintam o dever de pôr as suas ideias de lado e fazer o que é melhor para a nação, mesmo que isto traga desvantagens para si próprios (e.g. têm de viver mais longe da capital). Na questão da capital a etnia B pode invocar as razões benéficas para a capital estar na costa, mas provavelmente estará também a ser motivada por viver na costa e não porque é melhor para o país.


Espanha é um exemplo de um país pluri-nacional. A comunidade castelhana conseguiu que a sua língua fosse considerada a oficial do estado, embora outras nações do estado espanhol tenham línguas que não a castelhana. Se existisse uma votação para escolher a língua oficial o castelhano ganharia porque a comunidade castelhana é maior que as outras. Assim Castela é a nação A de Espanha.

Para os cidadãos de B a única forma de terem uma ideia correspondida é juntarem-se à ideia do rebanho maioritário ou então revoltarem-se contra o regime para impor as suas ideias. Ou seja, a única força política vitoriosa é sempre A nos moldes deste regime político, restando a B a tentativa de golpe de estado. É isto que acontece na realidade nalguns países, especialmente países onde existem duas etnias ou culturas bastante diferentes. Após algum tempo a etnia B, não existente politicamente por ser minoritária, acaba por ou pedir intervenção exterior ou por tentar a separação ou eliminação de A. Se juntarmos a isto o facto de que geralmente os direitos fundamentais ou o reconhecimento do sufrágio universal e maioria não acontecem, facilmente se geram guerras. África é especialmente sensível a isto por os seus países terem resultado de fronteiras não culturais, onde várias etnias estão juntas. Naturalmente a etnia maioritária consegue, sob um regime igual ao do mundo ocidental, dominar politicamente as outras. Como muitas vezes nem os direitos fundamentais de uma das etnias são respeitados uma guerra civil começa. Assim, uma democracia de sufrágio universal por maioria geralmente não funciona bem nestes países, que têm um sentido de responsabilidade nacional muito baixo. Outra forma mais trivial de conseguir o domínio é usar a força, e obviamente a etnia maioritária vence…

Nota: A presença de desenhos idiotas neste post ou em futuros deve ser considerado um tributo ao McGyver dos pixels: o MS Paint.

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