quinta-feira, janeiro 08, 2009

Os Bacalhaus Perdidos (V) - João Fernandes "Lavrador"

Como já falei anteriormente, existiram viagens portuguesas ao ocidente antes de 1492. No entanto, a primeira viagem bastante reconhecida começou em 1499, com um dos descobridores portugueses mais desconhecidos tendo em conta a sua fama. O famosíssimo Lavrador é na realidade um desconhecido para muita gente. A sua fama actual provém da existência de uma terra com o seu nome, o Labrador, no estado da Terra Nova e Labrador, no Canadá. A existência de um estado canadiano actual comum a estas duas terras é no mínimo irónica, pois como iremos ver estas eram consideradas como Portugal suas, juntando-se também o Cabo Bretão e ilhas adjacentes.

Mas voltemos ao Lavrador, o descobridor. Em Setembro de 1499 algo muito importante aconteceu em Portugal, com o regresso de Vasco da Gama. A rota para a Índia estava finalmente aberta, e na minha opinião foi isto que fez com que Portugal começasse a oficializar as suas descobertas a Ocidente, juntamente com o facto de que a ligação de Portugal a Espanha estar apenas baseada na vida do Príncipe D. Miguel da Paz cuja idade era pouca. Na minha opinião D. Manuel jogou pelo seguro, e os acontecimentos vieram a dar-lhe razão. Não acho que é por acaso que em 1499, 1500 e 1501 Portugal "descobre" de repente todas as terras a ocidente a que tinha direito segundo o Tratado de Tordesilhas (Gronelândia, Brasil, Terra Nova e Lavrador). Logo em Outubro de 1499, um mês depois de Vasco da Gama ter chegado, é emitida a seguinte autorização:

Dom Manuel etc. A quantos esta nossa carta virem fazemos saber que Joham Fernandez morador em a nossa Ilha Terceira nos disse que por serviço de Deos e nosso se queria trabalhar de hyr buscar e descobrir algumas Ilhas de nossa conquista aa sua custa e vendo nos seu bõo desejo e preposito aalem de lho termos em serviço a nos praz e lhe prometemos por esta de lha darmos como de feito daremos a capitania de quallquer Ilha ou Ilhas asy povoadas como despovoadas que elle descobrill (sic) e achar novamente e esto com aquellas remdas homrras proveitos e imteresses com que temos dadas as capitanias das nossas Ilhas da Madeira e das outras e por sua guarda e nossa lembrança lhe mandamos dar esta carta per nos asynada e aseelada com o nosso seelo pemdente. Dada em a nossa cidade de Lisboa a 28 dias do mez d'outubro, André Fernandez a fez, anno de nosso senhor Jhuu x.º de 1499

Dois anos depois, a 19 de Março de 1501 o rei Henrique VII de Inglaterra dá o senhorio das terras que descobrirem a Richard Ward, Thomas Ashurst, John Thomaz, negociantes de Bristol, juntamente com João Fernandes, Francisco Fernandes e João Gonçalves, estes últimos escudeiros das ilhas dos Açores, vassalos do Rei de Portugal (Armigeris in Insulis de Surris, sub obedientia Regis Portugalis oriundos). A 7 de Janeiro de 1502, o rei de Inglaterra dá "aos homens de Bristol que acharam a ilha libras=5", pelo que a viagem foi bem sucedida.
Conhecemos mais de Lavrador de forma indirecta por Pedro de Barcellos, que numa disputa de umas terras na ilha Terceira, defende a sua ausência da ilha com:

houve um mandato d'Elrei para ir a descobrir eu e um João Fernandes Lavrador, no qual descobrimento andamos bons tres annos

Há dúvida quanto à data desta carta de Pedro de Barcellos, Ernesto do Canto acreditava que ela era de 14 de Abril de 1495, já vi outros autores indicarem a data de 1502, que faz mais sentido tendo em conta a doação de D. Manuel de 1499. No entanto, dado a doação de D. Manuel dizer "que elle descobrill (sic) e achar novamente" pode querer dizer que ele já tinha achado a ilha antes de 1499. É uma questão de se confirmar a data. Voltemos a uma família Barcellos da ilha Terceira mais tarde, que muito provavelmente é a mesma de Pedro de Barcellos.

Em 9 de Dezembro de 1502 Henrique VII de Inglaterra volta a emitir uma carta semelhante à de 1501, mas desta vez o nomes são Thomaz Ashehurst, João Gonçalves, Francisco Fernandes e Hugh Elliott. O nome de João Fernandes já não aparece. Mas uma informação é importante, a carta diz "fazer navegações e descobertas marítimas, comtanto que não causassem prejuízo algum aos paizes anteriormente descobertos e reduzidos á obediência d'El Rei de Portugal". Ou seja, Inglaterra estava a garantir que não violaria os territórios anteriormente descobertos por Portugal. Aqui está outra informação que nunca se houve em lado nenhum.

Quererá o não aparecimento do nome de João Fernandes (alcunha Lavrador) estar relacionado com a sua morte? É bastante possível, porque nunca mais se ouviu falar dele. Contudo, o nome de Terra do Lavrador começou a aparecer em quase todos os mapas, imortalizando o seu nome.

Num mapa anónimo de 1534 a terra denominada Tiera do Labrador tem a legenda:

La qual fue descubierta por los ingleses de la vila de bristol e por que el que dio el laviso della era labrador de las illas de los Açores le quido este nombre

Esta legenda faz uma espécie de resumo de todas as outras legendas dos mapas do século XVI. Porém esta é a mais completa. A questão que se tem de pôr é porque é que Lavrador foi para Inglaterra juntar-se aos comerciantes de Bristol. Se assumirmos que a carta de Pero de Barcellos é de 1502 (o mais plausível) então sabemos que a viagem de ambos ocorreu de 1499-1502. Ou seja, pelo meio João Fernandes estava a juntar-se aos navegadores de Bristol. Como o rei Henrique VII de Inglaterra salvaguardava os interesses de Portugal (de notar que em 1501 Gaspar Corte-Real já tinha partido para a sua segunda viagem) Lavrador talvez quisesse juntar forças com navegadores e comerciantes que também queriam retirar proveito das terras do norte, terras que também eram suas devido à doação de D. Manuel I de 1499. Não é de excluir a hipótese da existência de rivalidade com os Corte Real, seus conterrâneos da Terceira.

Só falta esclarecer uma questão, que terra(s) Lavrador e Pero de Barcellos descobriram? A maior parte dos mapas do século XVI apresentam o actual Labrador junto com a Gronelândia, pelo que a legendada "Terra do Lavrador" é difícil de discernir. O mapa Cantino de 1502 apresenta a Terra Nova/Terra Nova+Labrador e a Gronelândia (ver esta parte do atlas na imagem ao lado) nas suas posições correctas, bastante afastadas, e indica a Gronelândia, legendada como "A Ponta da Ásia" com a seguinte legenda:

Esta terra he descober (sic) por mandado do mui excelentissimo principe dom manoel, Rey de portugall a qual se cre ser esta a ponta d'asia, e os que a descobriram nam chagaram a terra mas viroula, e nam viram senam serras muito espessas, polla quall segum a opiniom dos cosmofircos se cree ser a ponta d asia

Ao contrário da Terra Nova, que claramente é identificada como sendo descoberta por Gaspar Corte Real, a Gronelândia não apresenta descobridor. É provável que a Gronelândia tenha sido então descoberta por João Fernandes Lavrador e Pero de Barcellos. Se Lavrador descobriu ou não o actual Labrador é uma questão em aberto, mas existe a possibilidade de não o ter feito, mas com o tempo e as confusões dos mapas do século XVI o seu nome ter passado da Gronelândia para o actual Labrador. Se esta possibilidade for verdade, Lavrador seria o capitão da Gronelândia, o que é outra informação extremamente interessante e que nunca ouvi referida. Faz muito sentido assim a sua ligação a Bristol, cujos navegadores pescavam frequentemente nas costas da Gronelândia. De notar que a cartografia da Gronelândia efectuada por Lavrador e Barcellos seria a melhor em cerca de 200 anos, pois apenas após estes anos algum mapa rivalizou com a precisão da Gronelândia do mapa Cantino.

A última questão tem a ver com a relação da descoberta de Lavrador com a Dinamarca e Noruega, uma vez que estes reinos tinham reclamado este território no tempo dos raides vikings. Parece que as últimas populações nórdicas da Gronelândia extinguiram-se no século XV devido à mini idade do gelo neste século, pelo que seria interessante saber o que pensavam os reis da Dinamarca e Noruega (em união pessoal) sobre esta reclamação da Gronelândia para Portugal, como muitos mapas, incluindo Cantino, mostram. De notar que 25 anos antes Portugal e Dinamarca tinham feito explorações secretas conjuntas do árctico, pelo que as relações teriam de ser certamente boas. Esta é uma questão que ainda não tem resposta. Para a história fica mais o excelente trabalho de Lavrador, que com condições muito adversas, em mares muito perigosos devido ao gelo, conseguiu o objectivo.

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